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19.2.07

As cartas de Iwo Jima



No início do filme, Saigo, um soldado raso japonês (um padeiro que foi para a guerra relutantemente, deixando para trás a mulher e um filho bebé), diz para um colega que mais valia entregarem a ilha aos americanos e pronto. Eles acabariam por a conquistar de qualquer maneira e assim escusavam de morrer todos. Um capitão ouve este desabafo e castiga-o duramente: estas palavras antipatrióticas são para ele inqualificáveis. O dever deles é defender aquele pedaço de terra até à morte e qualquer outra atitude é de uma desonra inominável. Quem salva Saigo deste castigo é o General Kuribayashi, que um dia disse galantemente a uma dama americana que as suas convicções e as da sua pátria são as mesmas. Mas não é por acaso que as suas simpatias tendem para o ex-padeiro, e não para o recto e fanático oficial que o castiga. Apesar de nunca deixar de lutar pelas convicções da sua pátria, sentimos que estas já não coincidem inteiramente com as suas. Nostálgico dos tempos que passou na América, ao contrário de muitos dos seus compatriotas ele não menospreza nem subestima o adversário. Talvez duma forma mais racional, chegue à mesma conclusão instintiva do padeiro Saigo: da inutilidade de tudo aquilo.

Neste sentido, 'As cartas de Iwo Jima' é uma poderosa meditação anti-guerra. Eastwood diz-nos que a guerra destruiu a vida de uma série de 'Saigos' e das suas famílias, conduzindo na mesma o Japão a uma derrota. Da mesma maneira que nos dizia em 'As bandeiras dos nossos pais', que a guerra destruiu uma série de 'Ira Hayes' , apesar de estarem do lado dos vencedores e serem mesmo proclamados heróis. Eastwood não acha que valha sempre a pena perder vidas (literal ou metaforicamente) pelas convicções de um país.

'As cartas de Iwo Jima' é um filme muito mais poderoso do que 'As bandeiras dos nossos pais', talvez por ter personagens mais fortes, talvez por dar mais a ver do que demonstrar, talvez pela sua própria estrutura narrativa. Não tendo a complexidade formal do filme anterior, este filme não é, ainda assim, tão simples como parece. As cenas de batalha preenchem quase totalmente as duas horas e tal do filme, mas nem são um fim em si (não são especialmente espectaculares nem inovadoras), nem obedecem a maior parte das vezes a qualquer imperativo narrativo: poderia Eastwood ter tirado meia hora ao filme na montagem e este não sofreria nem um beliscão em consistência. Embora por vezes não se perceba muito bem para onde o filme vai, talvez estas cenas lá estejam porque têm que estar, porque numa guerra não é possível fugir às coisas, como o soldado Saigo descobre. Sabemos que os actos narrados, a batalha de Iwo Jima, durou uns 40 dias, mas dificilmente um espectador conseguirá dizer qual o tempo da 'coisa contada': uma semana, um mês? Por vezes parece mesmo que estamos a assistir a uma narrativa em tempo real, e esta ausência de referências temporais provoca alguma estranheza no espectador. Neste aspecto, não me parece que o filme tenha uma estrutura tão 'clássica' como tem sido dito. Mas só vendo-o outra vez, para perceber melhor esta estrutura.

Quem hoje em dia, além de Eastwood, faria um filme de guerra, ainda por cima visto do 'outro lado', que fosse uma meditação sobre a própria guerra, sem simplismos, sem ideologias de pacotilha, sem medo de pensar por si? Não o pondo ao nível das (várias) obras-primas de Eastwood, 'As cartas de Iwo Jima' é sem dúvida mais um sólido argumento para o colocar no panteão dos maiores realizadores Americanos.
Letters from Iwo Jima, E.U.A., 2006. Realização: Clint Eastwood. Com: Ken Watanabe, Kazunari Ninomiya, Shido Nakamura, Tsuyoshi Ihara, Ryo Kase, Yuki Matsuzaki, Hiroshi Watanabe.

1 comments:

Hugo said...

Ora nem mais. Eu nem tenho problemas em colocar este "letters if iwo jima" no panteão dos melhores filmes de guerra de sempre.

Certeza adicional: é uma obra-prima.