Faço parte uma geração de cinéfilos que descobriram Nanni Moretti com 'Querido diário' (1993), o filme em que a sua persona deambula pelas ruas de Roma primeiro (incluindo uma visita ao lugar onde Pasolini foi assassinado), por umas ilhas paradisíacas depois, terminando a perorar sobre médicos e doenças. Esta obra (já a sua oitava longa metragem) é, aliás, uma boa maneira de sermos introduzidos à sua filmografia, pois estão aqui reunidas muitas das marcas mais idiossincráticas do realizador italiano, mormente a personagem principal, sempre interpretada pelo próprio e que em todos os filmes anteriores já era um seu alter ego, aqui é... Nanni Moretti himself. Um Nanni Moretti obsessivo, hipocondríaco, hiperactivo, empenhado, indignado, inteligente, magnifico observador. Com excepção de Woody Allen, não haverá mais nenhum realizador que tenha criado uma persona tão vincada junto dos espectadores, que identificam completamente a personagem com o seu criador, simultâneamente intérprete e realizador (Woody Allen já chegou inclusive a um ponto em que identificamos imediatamente a personagem-Woody Allen mesmo quando ela já não é interpretada por ele).
'Abril', o filme que se seguiu, é uma espécie de episódio suplementar de 'querido Diário', continuando e refinando o falso registo autobiográfico da personagem Nanni Moretti. Basicamente quem gosta de um, gosta do outro.
Não por acaso, o primeiro filme de Moretti de que não gostei, foi aquele em que não associei a personagem de Moretti a Moretti - falo de 'O quarto do filho', pesada e aborrecida análise da dor de um homem que perde o filho. Moretti sai do seu elemento, torna-se 'sério' e falha redondamente, na minha opinião.
Mas voltemos atrás: saíram agora em dvd, pela Midas (que está a construir um excelente catálogo) Bianca (de 1984) e 'A missa acabou' (de 1985), as suas quinta e sexta longas metragens. Em 'Bianca', pela quarta vez em cinco filmes, Moretti interpreta o seu alter ego Michele Apicella, neste caso um professor com um comportamento obsessivo, que não consegue desistir de observar e interferir na vida dos seus amigos, não conseguindo aceitar as suas traições, infidelidades, as suas imperfeições muito humanas. Michelle/Moretti é irritante, obsessivo, metediço, paranóico (apaixona-se por Bianca, mas acaba por não se querer envolver com ela, porque um dia dali a 10 anos ela poderia conhecer outro e deixá-lo), mas identificamo-nos totalmente com ele. Essa identificação é tal que João Bénard da Costa diz que nos recusamos a aceitar que ele é um assassino (devo referir que quando o filme terminou a minha firme convicção era que Michele de facto não era o assassino). Em 'A missa acabou' a personagem principal é Don Giulio, um jovem padre que volta à terra natal, abandonando o realizador Michele Apicelli, mas não o facto de dar corpo a um seu alter ego. Mais uma vez as principais características da sua personagem são a indignação, o comportamento obsessivo, a irritação com o estado do mundo em geral e com os seus amigos e família, em particular. Um amigo tornou-se terrorista e foi preso; outro desistiu da vida e fica em casa sem fazer nada; o pai arranjou uma amante mais jovem e deixa a mãe; a irmã quer fazer um aborto; etc, etc. Giulio não chega ao ponto de os assassinar (afinal é padre!), mas exaspera-se por as coisas serem como são e não como ele gostaria que fossem.
Ambos são filmes magníficos, idiossincráticos, revelando um jovem realizador de trinta e poucos anos já no auge das suas capacidades, criador de um universo próprio e inimitável. Gosto muito de 'Querido Diário' e 'Abril', mas estas obras da juventude são-lhes superiores, mais poderosas e inquietantes. A não perder, muito especialmente por quem só conhece o último Moretti.
PS.: Outra boa notícia é que a Midas vai lançar brevemente Ecce Bombo (1978), Sogni D’oro (1981) e Palombella Rossa (1989). E, diga-se, com preços que não sendo propriamente baratos, para o mercado português até são sensatos.
8 comments:
e já está! após ler a tua excelente crítica, lá me decidi a largar os 25€ do pack. este fim de semana vou vê-los_:). abrraço
Que responsabilidade :)
descansa que se não prestarem (o que duvido mesmo muito)responsabilizo o moretti e não a ti:) abraço
muito bom o bianca. muito bom mesmo. Espero que a Missa Acabou esteja ao mesmo nível.
É igualmente bom. Ainda assim eu gostei especialmente do Bianca.
Conheço pouco da filmografia inicial de Moretti, mas chamar a "O Quarto do Filho" falhanço roça a heresia!
achei-o banalissimo. é do Moretti como podia ser de outro realizador qualquer.
O la massa é finita, ainda é melhor que o Bianca! Excelente compra os dois. Tanks madox
Post a Comment