Vera Drake é uma força da natureza. Sendo empregada doméstica em casa de familias ricas, dedica o seu tempo livre a ajudar os pobres. Visita-os, leva-lhes um cházinho, convida-os até para jantar em sua casa. Dentro deste espírito, tem também uma actividade que os seus próximos não suspeitam: 'ajuda raparigas em dificuldades', como ela diz. Ou seja, faz abortos clandestinos, uma vez que o aborto ainda é ilegal na Inglaterra dos anos 50, onde decorre a acção. Mike Leigh, um veterano do 'realismo inglês', tem aqui um dos seus filmes mais políticos e simultaneamente com mais sucesso: vencedor do Leão de Ouro em Veneza e nomeado para 3 Oscares. Mas, quanto a mim, o problema está justamente neste lado político do filme, que leva Mike Leigh a um esquematismo que torna tudo pouco credível. Comecemos pela família de Vera Drake, género pobrezinhos mas honrados, com o marido empregado na oficina do irmão e sempre a dizer que têm muita sorte, a filha sempre curvada que trabalha numa fábrica de lâmpadas, o seu namorado que mal abre a boca e está sempre com ar infeliz (apesar de sentir muito feliz por ter conhecido aquela família). Por contraste temos os ricos, superficiais e arrogantes, e aquela que é a personagem mais ridicularizada pelo realizador/argumentista: a cunhada de Vera Drake, que já foi pobre mas agora tem algumas posses e se comporta como nova-rica. Mas há mais: se é fácil acreditar que Vera Drake não levava nada pelo seu trabalho clandestino, uma vez que tudo era feito num espirito de ajuda aos mais desfavorecidos, já é mais difícil acreditar que não soubesse que a sua amiga não cobrava nada às 'clientes' que angariava, ou que não tivesse noção dos riscos do que fazia para as mulheres que ajudava. E que em vinte anos ninguém tivesse morrido em consequência destes abortos caseiros e sem condições. Ou seja, para demonstrar a sua 'tese' (e o problema não está na tese), que Vera Drake - e, subentende-se, as outras mulheres que faziam abortos clandestinos- era uma heroína/mártir e que a lei é que estava errada, Mike Leigh pinta tudo a preto e branco, quando sabemos que no mundo real as coisas raramente assim são: geralmente não são pretas nem brancas, são cinzentas. Por isso, apesar do tom realista, raramente me acreditei tão pouco nas personagens como nas deste filme.
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10.2.05
Vera Drake
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Vera Drake é uma força da natureza. Sendo empregada doméstica em casa de familias ricas, dedica o seu tempo livre a ajudar os pobres. Visita-os, leva-lhes um cházinho, convida-os até para jantar em sua casa. Dentro deste espírito, tem também uma actividade que os seus próximos não suspeitam: 'ajuda raparigas em dificuldades', como ela diz. Ou seja, faz abortos clandestinos, uma vez que o aborto ainda é ilegal na Inglaterra dos anos 50, onde decorre a acção. Mike Leigh, um veterano do 'realismo inglês', tem aqui um dos seus filmes mais políticos e simultaneamente com mais sucesso: vencedor do Leão de Ouro em Veneza e nomeado para 3 Oscares. Mas, quanto a mim, o problema está justamente neste lado político do filme, que leva Mike Leigh a um esquematismo que torna tudo pouco credível. Comecemos pela família de Vera Drake, género pobrezinhos mas honrados, com o marido empregado na oficina do irmão e sempre a dizer que têm muita sorte, a filha sempre curvada que trabalha numa fábrica de lâmpadas, o seu namorado que mal abre a boca e está sempre com ar infeliz (apesar de sentir muito feliz por ter conhecido aquela família). Por contraste temos os ricos, superficiais e arrogantes, e aquela que é a personagem mais ridicularizada pelo realizador/argumentista: a cunhada de Vera Drake, que já foi pobre mas agora tem algumas posses e se comporta como nova-rica. Mas há mais: se é fácil acreditar que Vera Drake não levava nada pelo seu trabalho clandestino, uma vez que tudo era feito num espirito de ajuda aos mais desfavorecidos, já é mais difícil acreditar que não soubesse que a sua amiga não cobrava nada às 'clientes' que angariava, ou que não tivesse noção dos riscos do que fazia para as mulheres que ajudava. E que em vinte anos ninguém tivesse morrido em consequência destes abortos caseiros e sem condições. Ou seja, para demonstrar a sua 'tese' (e o problema não está na tese), que Vera Drake - e, subentende-se, as outras mulheres que faziam abortos clandestinos- era uma heroína/mártir e que a lei é que estava errada, Mike Leigh pinta tudo a preto e branco, quando sabemos que no mundo real as coisas raramente assim são: geralmente não são pretas nem brancas, são cinzentas. Por isso, apesar do tom realista, raramente me acreditei tão pouco nas personagens como nas deste filme.
1 comments:
Concordo, o filme desilude. Vale pelos actores e pelos ambientes realistas. De resto...
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