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23.6.06

A Noite Americana



Não há maior prova de amor ao cinema do que este filme. Tudo nele respira cinefilia, a começar pelo titulo (nome da técnica usada para filmar cenas nocturnas à luz do dia, colocando filtros na objectiva) e pelo seu realizador, François Truffaut, importantíssimo critico dos Cahiers du cinéma antes de ser realizador (e, já depois, autor da famosa entrevista a Hitchcock). E, claro está, o seu argumento: o dia a dia da equipa de realização do filme 'Meet Pamela', liderada pelo realizador Ferrand (interpretado por... Truffaut, himself). O filme é fascinante para o cinéfilo a vários níveis: desde logo pela oportunidade de assistir à (representação da ) rodagem de um filme, observando os inúmeros detalhes a ter em conta, desde as técnicas utilizadas (uma vela oca com uma lâmpada dentro; uma falsa janela; espuma a fazer de neve; etc; etc.), passando pelos pequenos pormenores que o realizador tem que decidir (como a cor de um carro ou o tamanho de uma pistola) e culminando nas condicionantes invisíveis ao público mas que influem directamente no argumento e realização, como o tempo de filmagem disponível, o que as companhias de seguros pagam ou não pagam, e até os instáveis humores dos actores ou, caso mais radical, a morte de um deles, tendo só parte do seu papel sido rodada. Num segundo nível, chamemos-lhe assim, o espectador vai-se divertindo a 'descobrir' as referências cinéfilas que vão aparecendo (é como aquela caixa que tem outra caixa dentro, que por sua vez tem outra caixa dentro, que por sua vez...), desde as mais óbvias - o realizador Ferrand/Truffaut recebe uma encomenda de livros e espalha-os à nossa frente (enquanto ouve ao telefone uma das musicas do filme, numa belissima cena), livros sobre Bunuel, Dreyer, Lubitsch, Godard, Hitchcock, Rossellini, Hawks, etc.; ou quando a equipa de filmagem vai rodar uma cena no exterior e passa pela Rua Jean Vigo - até aquelas mais para cinéfilos - um dos actores do filme dentro do filme, Alphonse, é interpretado por Jean-Pierre Léaud, cujo comportamento estouvado e impulsivo nos remete imediatamente para a personagem de Antoine Doinel, que Léaud interpretou em 5 filmes de Truffaut; numa cena, Alphonse pede um conselho a Ferrand sobre o próximo filme, doutro realizador, em que vai entrar, tal como Léaud fazia com Truffaut - e inclusive referências invisíveis que só fanáticos ou experts descobrirão - como alguns actores usarem roupa de outros filmes de Truffaut.

A um nível mais profundo, notaremos que este é o filme mais autobiográfico de Truffaut desde 'Os 400 golpes'. Não tanto pelo facto de ele próprio entrar e representar um realizador (e de facto imaginamos que Ferrand não deve ser muito diferente de Truffaut), mas pelos temas tocados pelo filme: como o próprio realizador disse, "todos os conflitos de 'A Noite Americana' e 'Meet Pamela' dizem respeito a problemas de identidade e paternidade". Recordemos que Truffaut nunca conheceu o pai e foi criado pela mãe que não o amava ("a minha mães morreu", diz o jovem Doinel numa famosa sequência d´'Os quatrocentos golpes'), tendo sido um adolescente problemático que apenas encontrou alguma tranquilidade no mundo do cinema - conta-se que na sua juventude chegava a ir ao cinema 3 vezes por dia e terá visto mais de 3000 filmes em 10 anos! Não é assim de admirar, que ao contrário de outros filmes sobre o mundo da sétima arte (de que é paradigmático o cáustico ‘Crepúsculo dos Deuses' de Billy Wilder), 'A Noite Americana' seja um acto de amor ao cinema, apresentado como mais importante e perfeito do que a vida, um tema que sempre foi caro a Truffaut. Quando uma assistente foge com um duplo durante as rodagens, uma personagem comenta: "eu deixaria um homem por um filme, mas nunca deixaria um filme por um homem"! E a actriz Julie Baker (Jacqueline Bisset), que dorme com Alphonse, traindo o marido que ama, apenas para este não ir atrás da namorada e abandonar as rodagens, exclama às tantas "a vida é repugnante". Os filmes, por seu lado - como diz Alphonse a Ferrand - "são mais harmoniosos do que a vida, não há engarrafamentos, não há tempos mortos".
La nuit américaine, França, 1973. Realizador: François Truffaut. Com: François Truffaut, Nathalie Baye, Jean-Pierre Léaud, Jacqueline Bisset.

2 comments:

Hugo said...

É curioso como, mais ou menos na mesma altura, escrevemos sobre o La nuit américaine :)

Este é um filme tecnicamente perfeito. O mise en abyme é brilhante e o filme dentro fo filme tem a particularidade de nos mostrar o quão obsessivo o cinema pode ser. O cinema impera como diz Ferrad.

Mas, mais importante, a par do tom autobiográfico, onde vemos um realizador atormentado por imagens do passado em que furtava posters do Citizen Kane, "LA nuit américaine" é uma espécie de resumo da Cinematografia de Truffaut. Léaud lembra Doinel, há cenas que lembram "la peau douce",...

Para além disso, é fantástico ver o próprio balanço que é feito acerca da Nouvelle Vague: Alphonse, que passa a vida no Cinema, tem tiradas que fazem lembrar Truffaut quando crítico e Ferrand chega a dizer que nunca mais serão feitos filmes como "je vous présente Pamela", sublinhando que os cenários naturais serão o futuro...

Filme para, chamemos-lhe assim, tarados cinéfilos, "La nuit américaine" é a pequena grande Enciclopédia do Cinema e, como tal, tem a virtualidade de introduzir o espectador a esse Mundo de fantasmas e ilusões. Mas o filme é Truffaut, tal como Truffaut é cinema e, precisamente por isso, toda a sua humanidade está lá, bem como o realizador preciso e meticuloso.
La vie c'était l'écran!!

Abraço!

Unknown said...

é verdade, é bom haver mais alguém que se lembra de truffaut para além d´'os 400 golpes' e do 'jules e jim' :) é bom haver alguém que escreve sobre filmes com mais de 15 dias.